Em uma reportagem recente ouvi que há três situações que transformam o modo como uma sociedade pensa: guerras, revoluções e epidemias. O curioso é que cada uma dessas foge ao controle de qualquer pessoa ou grupo. Ninguém consegue controlar os efeitos de uma guerra, ou os rumos de uma revolução ou mesmo as reações a uma epidemia. Um exemplo foi o efeito nos EUA sobre o papel da mulher na família e sociedade após a Segunda Guerra. Tendo assumido um papel mais protagonista durante a guerra, enquanto os homens estavam combatendo, a sociedade norte-americana teve de lidar com as consequências desta mudança inesperada no pós-guerra.
Parece também seguro afirmar que estas crises não mudam uma sociedade por si, são apenas contextos em que mudanças são aceleradas. Oportunidade (boas ou más) são descobertas. Crises apenas revelam e possibilitam mudanças que nosso coração já vinha desejando. Assim como Jesus afirmou que “a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12.34), crises trazem à tona o que já estava no coração. Nesta pandemia vejo gente se dedicando mais e mais a estudar a Palavra, assim como tenho visto alguns gastarem mais tempo diante da TV e dos celulares. Tenho visto alguns buscarem maneiras de servir ao próximo enquanto outros estão mais preocupados com seu entretenimento. Uma pergunta que cabe aqui é: qual tem sido a sua busca? Como você tem usado sua rotina alterada?
Certamente temos mudado durante esta pandemia. O mundo como o conhecemos não será o mesmo após ela. Tenho ouvido pastores e líderes de igrejas ansiosos para que “tudo volte ao normal”. Temo por eles, pois não creio que o novo normal será igual ao antigo normal. Nossas igrejas estão descobrindo, com maior ou menor eficácia, maneiras diferentes de conviver. Algumas igrejas não têm se preocupado em manter contato com os membros enquanto outras inundam a internet com “lives”, encontros e eventos virtuais. A pergunta também cabe neste caso: como sua igreja tem reagido ao novo contexto?
Nossas formas são desafiadas numa nova realidade, não nossa essência. Jesus deixa claro que nossa essência é amar a Deus e ao próximo.
Minha grande pergunta não é se a pandemia passará (mesmo as previsões mais pessimistas reconhecem que esta pandemia passará, ainda que deixe um trágico rastro em vidas perdidas e economias abaladas), minha curiosidade é como sermos igreja, como cumprirmos nosso chamado em uma nova realidade. Isso nos traz ao tema de forma e essência. Aquilo que realmente importa e que somos chamados a fazer e ser é a essência; o modo como fazemos é a forma. Essência, no entanto, precisa de forma para poder existir. Se eu amo minha esposa (essência), mas não expresso meu amor (forma), este é irrelevante ou até duvidoso. Já formas sobrevivem muito tempo após perderem sua essência. Toda vez que você ouvir, em uma igreja, empresa ou família, a frase “Nós sempre fizemos assim” como defesa de uma posição, desconfie que esta forma já perdeu sua essência e precisa ser abandonada ou reinventada. Nossas formas são desafiadas numa nova realidade, não nossa essência.
Jesus deixa claro que nossa essência é amar a Deus e ao próximo (Marcos 12.28-34). Esta é nossa essência como cristãos. Nossa rotina anterior não é nossa essência. Nossa essência podia ser expressa e ajudada (ou atrapalhada) por nossa rotina, mas nossa essência é algo muito mais profundo e consequentemente impermeável às mudanças como guerras, revoluções ou pandemias. Como seres humanos, somos muito apegados à nossa forma de viver. É comum que formas que antes promoviam nossa essência tenham perdido sua relevância com o tempo. Desta forma, um período de crise como esta pandemia é um excelente momento para avaliarmos de que maneira temos vivido e expresso nossa essência.
Deixe-me propor um exercício pessoal, de família ou mesmo como igreja: avalie nestes próximos dias o que realmente faz falta em termos de vivermos nossa essência como cristãos. Com certeza encontraremos coisas que gostamos, que nos fazem falta, mas não colaboravam com nosso chamado de amar a Deus e ao próximo. Algumas formas talvez até atrapalhassem. Não sabemos o que a realidade pós-pandemia nos trará, mas faça a si mesmo a seguinte pergunta: de que forma posso melhor expressar meu amor a Deus e ao próximo neste momento? E, ao encararmos a realidade que virá, faça a mesma pergunta. Tenho certeza de que vamos encontrar formas das quais desapegar e outras a desenvolvermos. Com isso este período de provação nos deixará mais íntegros e, pela graça de Deus, mais próximos dele.
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutorando em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995