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sábado, 25 de janeiro de 2020

Afasta de mim este cálice?


A Idade traz consigo alguns privilégios – e não me refiro a filas preferenciais. Idade pode trazer perspectiva, idade pode trazer sabedoria. Certamente idade traz memória. Ao ler o capítulo 18 de João fui remetido a uma destas memórias. Era a época do regime militar. A dupla Gilberto Gil e Chico Buarque era extremamente popular. Em um festival de 1973, tentaram cantar a música Cálice, mas foram impedidos pela censura. Em 1978, finalmente, a música foi liberada. Nelas os autores fazem um trocadilho entre a famosa passagem em que Jesus ora: “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice” e a frase contra a censura que afirmava: “Afasta de mim esse cale-se”, em um claro protesto contra a censura determinada pelo regime militar. Os autores ganharam reconhecimento pelo trocadilho e a música brilhantes, mas acredito que perderam a consequência eterna do cálice que Jesus deveria e decidiu tomar.
A Bíblia comenta sobre pelo menos quatro cálices (não confundir com as sete taças de Apocalipse). Uma é a taça da consolação (Jeremias 16.7). Aqui Deus profetiza que haverá (como realmente houve) um tempo em Israel onde não existirá nem sequer um amigo para chorar contigo uma perda, ninguém para lhe dar o cálice da consolação. Um segundo cálice é apresentado no Salmo 23.5. Davi declara aqui sua experiência e confiança de que Deus traria a ele reconhecimento e honra. O terceiro é mencionado no Salmo 116.13. A expressão aqui é de gratidão pela salvação. O cálice é levantado, lembrando a prática dos brindes realizados em alguns momentos. O salmista ergue a taça da salvação, louvando a Deus pela salvação que é dele.
Em João 18.10-11, Jesus não está se referindo a nenhuma destas taças. O contexto é a noite em que Judas conduz o grupo dos soldados para prender Jesus. O texto diz:
10Simão Pedro, que trazia uma espada, tirou-a e feriu o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha direita. (O nome daquele servo era Malco.) 11Jesus, porém, ordenou a Pedro: “Guarde a espada! Acaso não haverei de beber o cálice que o Pai me deu?”
Jesus, apesar de ter pedido que o Pai afastasse dele o cálice (Mateus 26.39,42), também declara que seu compromisso primário é com a vontade do Pai. Sua pergunta a Pedro é retórica. Para ele, assim como para seus ouvintes, a única resposta possível seria “é claro que ele vai beber o cálice que seu Pai lhe deu”.
Pelo menos duas considerações vêm à minha mente diante deste texto. Este cálice é o cálice do juízo. É o cálice da punição pelos pecados. Deus, em sua santidade e integridade, continua totalmente alinhado com sua promessa em Gênesis 2.17: “... no dia em que dela comer, certamente você morrerá”. O pecado não podia ser deixado sem punição, pois ele afronta a própria identidade de Deus. Todo e qualquer pecado é muito mais que um deslize moral, justificado por circunstâncias ou condicionamento. O pecado é um punho levantado contra Deus em desafio a quem ele é. Neste sentido, estamos todos condenados... Paulo escreve sobre a graça diante desta realidade aterradora em Romanos 5.8-9:
Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores. 9Como agora fomos justificados por seu sangue, muito mais ainda, por meio dele, seremos salvos da ira de Deus!
O cálice que Jesus tomou era o cálice da ira, do juízo e da reprovação de Deus. Era a própria morte, pois Deus é vida e o pecado significa desafiar a Deus e abrir mão da vida verdadeira em troca de alguns momentos de satisfação e autoafirmação. Jesus, e só ele, podia tomar este cálice, por ser o único humano sem pecado. Desta forma sua morte (tomar o cálice) tornou-se a satisfação (propiciação) da ira de Deus.
A segunda consideração que me vem à mente é como eu reajo aos cálices que Deus me dá para beber? Sou imensamente grato por Jesus ter tomado o cálice da ira que era meu por merecimento. Ainda assim, Deus pede que nós, seus filhos, tomemos versões infinitamente menores de cálices para sua glória, para seu plano. Uma vez mais, Paulo escreve a respeito em Colossenses 1.24: “Agora me alegro em meus sofrimentos por vocês e completo no meu corpo o que resta das aflições de Cristo, em favor do seu corpo, que é a igreja”.
Todo e qualquer pecado é muito mais que um deslize moral, justificado por circunstâncias ou condicionamento. O pecado é um punho levantado contra Deus em desafio a quem ele é.
Paulo afirma que completa em seu corpo o que ainda falta das aflições de Cristo. Estas aflições que faltam completar não se referem à salvação, pois sua obra de salvação foi completa (1Pedro 3.18). No entanto, para que o corpo de Cristo seja estabelecido, para que seu evangelho seja proclamado, para que a igreja alcance todos os povos, sacrifícios precisam ser feitos. Desta forma imitamos a Jesus em sua vida e em seus compromissos. Você está completando o que resta das aflições de Cristo quando reage com graça ao ser ofendido, quando continua confiando mesmo diante da dor, quando se entrega à vontade de Deus mesmo que ela contrarie a sua. Você está tomando um pequeno cálice de dor para que o reino de Deus seja estabelecido, em seu coração, em seus relacionamentos e neste mundo.
É uma pena que os autores brilhantes da música Cálice não conhecem o final da história. Com isso perderam o maior dos reconhecimentos: ser chamado de filho de Deus! Jesus não rejeitou o cálice que o Pai lhe deu para beber. Diante disso podemos ter esperança de uma vida de eterna comunhão com ele. Eu oro para que você e eu, diante de cálices amargos enviados pelo Pai, digamos com fé e confiança: “Acaso não haverei de beber o cálice que o Pai me deu?”.